“Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício: porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: ‘Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?’ Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: ‘Eodem loco ponem latronem, et piratam quo regem animum latronis et piratae habentem’. Se o rei de Macedônia, ou de qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.”
— Sermão do Bom Ladrão, Pe. Antônio Vieira
É estarrecedor notar o véu de respeito que têm os políticos diante de nossa sociedade. E não só os políticos, mas também grandes chefes de quadrilhas e mafiosos. O roubar muito parece cobrir o ladrão de uma áurea de respeitabilidade perante a opinião pública. Como nos mostra o Sermão do Bom Ladrão do padre Antônio Vieira, datado de 1655, tal fenômeno é bastante antigo e já foi diagnosticado no passado distante. Hoje, porém, ele toma dimensões mais preocupantes, haja visto o grau de santidade que o chamado Estado Democrático de Direito tomou, e junto com ele, a ideia de que todas soluções para os problemas em sociedade passam por políticos ao mesmo tempo em que sabidamente todos eles não passam de vigaristas salafrários, boçais sem nenhum pudor e inibição moral para práticas sistemáticas de furtos e roubos.
Onde mais um político conseguiria tantos olhos para espionar você, se você mesmo não tivesse propiciado a ele? Como ele poderia ter tantos punhos para agredir você, se você não tivesse emprestado os seus a ele? Os pés que marcham pelas cidades, de onde eles os tirariam se não pudesse contar com os seus pés? Como ele tem tanto poder sobre você que não seja através de você? Como ele poderia atacar você sem contar com a sua colaboração? Eis um dos maiores mistérios da Filosofia Política: por que o ser humano se auto subjuga à servidão voluntária diante de crápulas imundos? Em seu Discurso da “Servidão Voluntária”, Étienne de La Boétie escreveu um dos maiores clássicos da literatura política ao analisar essa questão.
Em essência, La Boétie concluiu o mesmo que Vieira, a saber, que
em última análise, toda a legitimidade dos tiranos vem da anuência da maioria de seus súditos, que, por sua vez, tem origem na carência de virtudes no povo. Não que este seja culpado pela tirania, mas que ele é o único capaz de romper o ciclo de sua própria escravidão e isto consiste essencialmente em um problema moral e não de força bruta, pois se: “decidi não mais servir e sereis livres; não pretendo que o empurreis ou sacudais, somente não mais o sustentai, e o vereis como um grande colosso, de quem se subtraiu a base, desmanchar-se com seu próprio peso e rebentar-se.” (La Boétie)
Roubar pouco faz do homem um marginal e roubar muito, um político. Estamos esperando o que para dar aos segundos o desprezo que damos aos primeiros na proporção de suas vilanias?
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